segunda-feira, 26 de agosto de 2013

A fera amansada

Beethoven, eyeliner, chapéu de coco, ganchos e olhos - alguns dos conceitos que emergirão automaticamente a quem ouvir a expressão "Laranja Mecânica". Isto se não for um aficionado do "desporto-rei" e se recordar de imediato do Van Basten, do Van Der Vaart, do Van Nistelrooy e doutros Van qualquer coisa.
Não nos dispersemos. Os conceitos acima referidos fixaram-se nas nossas retinas devido à obra de Stanley Kubrick de 1971. Apresentando: Alexander De Large... 


Eu arriscaria dizer que A Laranja Mecânica é um daqueles casos em que o filme superou o livro em termos de reconhecimento público. Sem desprimor para a obra de Anthony Burgess, de leitura obrigatória para quem se quer aventurar pelos meandros da literatura distópica. É certo que a linguagem poderá criar algumas resistências. Burgess, com rasgos de génio, criou uma linguagem própria para uso das personagens, Nasdat, um misto de inglês, russo e gíria britânica que suscita algumas dificuldades ao leitor e, por outro lado, também deve ser um bicho de sete cabeças para o tradutor. Depois de, nas primeiras edições, ter-se confiado (ou talvez sobrestimado) a agudeza dos leitores, apresentando o texto sem qualquer auxílio à interpretação dos neologismos usados e confiando que o contexto seria suficiente para os decifrar, acabou-se por optar pela apresentação de um glossário, presente não só nas edições inglesas como nas diversas traduções. Pelo menos assim é no exemplar em que li, pela primeira vez, a obra de Burgess, um bem velhinho das Edições 70. No ano passado, comemorando os 50 anos da edição original, a Objectiva lançou uma nova edição com extras, linguagem "DVDiana" à parte.


Para quem está à espera de uma leitura tranquila e sem necessidade de grande esforço, é melhor avisar que o Nasdat está omnipresente ao longo de todo o texto, ou não fosse a narrativa contada na primeira pessoa pelo protagonista, Alex, o mau selvagem, A-lex, o sem-lei, líder dos Droogs, um gang de adolescentes que se entretêm a espalhar a violência e o terror pelas ruas de Londres, depois de uns copos de leite temperado com moloko, uma espécie de droga que faz emergir os instintos mais primários dos consumidores. Mas Alex não é apenas um animal violento. Burgess incute-lhe um certo requinte, expresso, em particular, no gosto por música clássica. Beethoven, o favorito. 
Anthony Burgess apresenta assim uma perspectiva pouco optimista da humanidade. O homem, quando despido dos limites colocados pela civilidade, é um animal feroz, violento, insaciável na busca do prazer que retira da humilhação e da dizimação do outro.
Porém, não é nas noites a ferro e fogo dos Droogs onde se encontra o cerne da visão distópica patente em A Laranja Mecânica, mas sim quando Alex, detido pela polícia, é convencido a experimentar um novo remédio para a violência, o método Ludovico. Obrigado a assistir a cenas ultraviolentas, sob o efeito de drogas e ouvindo incessantemente a sua tão amada música clássica, que se lhe torna a partir de então repugnante, o método Ludovico (inspirado em Pavlov?) faz com que Alex passe a associar a violência e o sexo, em A Laranja Mecânica sempre de mãos dadas, à dor. Qualquer tentativa ou simples pensamento que induza a uma recaída é retraído por um sofrimento profundo.
O reverso da moeda: Alex torna-se completamente indefeso. A narrativa sobre a sua vida após a saída da prisão não deixa de encontrar paralelo no chorrilho de desgraças do Cândido de Voltaire, em A Laranja Mecânica incomparavelmente mais negras, sendo que Alex não é um Cândido conformista mas sim uma vítima em constante sofrimento, o qual culminará numa resolução drástica. Mas a história não acaba aqui. E não adianto mais.
Burgess questiona em A Laranja Mecânica se é legítimo a uma entidade soberana o acto de condicionar os instintos dos indivíduos em prol de uma sociedade pacífica e dócil, despojando-os do que é perturbador desse ideal maior mas, que, por outro lado, lhes é inerente e confere individualidade. Em suma, a paz justifica a eliminação do livre-arbítrio? Se sim, o que sucede? Laranjas mecânicas, pois.
A. Zamperini

Sem comentários:

Enviar um comentário